Por Carlos Marques Lacerda
Os tempos são estranhos e perigosos. Por um lado, a ameaça invisível de um vírus perigoso parece ser um sinal letal para que não saiamos de casa. Por outro lado, um desgoverno autoritário parece fazer de tudo para que todos se infectem o quanto antes, numa arquitetura sórdida que selecionará apenas os sobreviventes, provavelmente os que possuem melhores condições financeiras para suportar a crise sanitária e econômica.
Os tempos são duplamente estranhos e perigosos, pois tempos de pandemia são também ótimas janelas de oportunidade para tiranias avançarem em seus projetos de poder, aplicando medidas autoritárias que garantam o maior controle sobre o povo, retirando das pessoas os poucos direitos que possuem. Direitos esses conquistados a partir de muita luta. Perder um direito é também esquecer o quanto de luta e sangue foi dado para conquistá-lo.
Por isso, talvez mais do que nunca, seja tão importante sabermos nossos direitos. Não porque uma lei no papel vá garantir algum direito substancial e verdadeiro, mas porque, se está no papel na forma de uma lei, é porque esse direito custou muito sangue e muito esforço de nossos antepassados.
Um desses direitos é o direito fundamental à educação. Não qualquer educação, mas uma educação igualitária, universal, de todos e para todos, e, sobretudo, de qualidade. Então, o que dizem as leis do nosso país sobre o Direito à Educação? Como professores(as) e alunos(as) podem, neste momento de crise, debater a educação? Seria o Ensino à Distância (EaD) uma solução?
A Educação na Constituição
O direito à educação está em primeiro lugar na Constituição Federal, onde a educação é tratada como um direito de todo(a) cidadão(a) brasileiro(a), independentemente de sua condição social, gênero, raça, opinião política ou qualquer outra distinção. Ela é vista como algo que deve ser oferecida com igualdade de condições, com liberdade, que deve ter uma gestão democrática e observar um padrão de qualidade. Diz o art. 206 da Constituição:
Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
I- igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;
II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber;
VI – gestão democrática do ensino público, na forma da lei;
VII – garantia de padrão de qualidade;
Dessa maneira, independente do que façamos, se adotaremos como educação o ensino à distância nestes estranhos tempos de pandemia ou não, devemos sempre observar esses princípios básicos do direito à educação. Afinal, mesmo que achemos uma boa ideia as aulas online, ainda assim elas devem ser ofertadas democraticamente, com igualdade de condições, resguardando a liberdade de ensinar e aprender, ao mesmo tempo em que devem manter o padrão de qualidade, na medida do possível, das aulas presenciais.
Isso nos leva a uma importante conclusão: no Brasil, a educação segue uma regulamentação, não sendo permitido ofertar educação regular de qualquer maneira, sem cumprir as normas mais básicas ou sem respeitar os direitos e princípios mais fundamentais.
A segunda lei que podemos conferir é a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), pois é ela que disciplina, de forma bem ampla e geral, toda a educação brasileira. Nela, muitas ideias já contidas na constituição são repetidas:
Dos Princípios e Fins da Educação Nacional
Art. 3º O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
I – igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;
VII – valorização do profissional da educação escolar;
VIII – gestão democrática do ensino público, na forma desta Lei e da legislação dos sistemas de ensino;
IX – garantia de padrão de qualidade;
Educação à Distância (EaD)
Mas o que mais importa aqui é o que LDB diz sobre aulas à distância. Afinal, essa tem sido a solução mais frequentemente apresentada pelos governos para lidar com a suspensão das aulas por conta da pandemia de Covid-19. Declaram os governos: “Se não se pode aglomerar em escolas, que o ensino seja à distância!” Mas seria mesmo uma boa ideia?
Diz a LDB sobre o EaD no Ensino Fundamental e Ensino Médio:
Art. 32. § 4º O ensino fundamental será presencial, sendo o ensino a distância utilizado como complementação da aprendizagem ou em situações emergenciais.
Art. 32. § 4º O ensino fundamental será presencial, sendo o ensino a distância utilizado como complementação da aprendizagem ou em situações emergenciais.
Art. 36. § 11. Para efeito de cumprimento das exigências curriculares do ensino médio, os sistemas de ensino poderão reconhecer competências e firmar convênios com instituições de educação à distância com notório reconhecimento, mediante as seguintes formas de comprovação:
I – demonstração prática;
II- experiência de trabalho supervisionado ou outra experiência adquirida fora do ambiente escolar;
III- atividades de educação técnica oferecidas em outras instituições de ensino credenciadas;
IV- cursos oferecidos por centros ou programas ocupacionais;
V- estudos realizados em instituições de ensino nacionais ou estrangeiras;
VI – cursos realizados por meio de educação a distância ou educação presencial mediada por tecnologias.
Trocando em miúdos, o Ensino à Distância é previsto na Lei que organiza a educação brasileira para o Ensino Fundamental, mas apenas como forma de complementação e para situações emergenciais. O que pode até ser o caso, mas a regra continua sendo o ensino presencial e o EaD como complemento.
Vejamos o que diz o Decreto nº 9.057 de 2017, que regulamenta o EaD:
Art. 9º A oferta de ensino fundamental na modalidade à distância em situações emergenciais, previstas no § 4º do art. 32 da Lei nº 9.394, de 1996, se refere a pessoas que:
I- estejam impedidas, por motivo de saúde, de acompanhar o ensino presencial;
II – se encontrem no exterior, por qualquer motivo;
III – vivam em localidades que não possuam rede regular de atendimento escolar presencial;
IV – sejam transferidas compulsoriamente para regiões de difícil acesso, incluídas as missões localizadas em regiões de fronteira;
V – estejam em situação de privação de liberdade;
VI – estejam matriculadas nos anos finais do ensino fundamental regular e estejam privadas da oferta de disciplinas obrigatórias do currículo escolar.
Já no que diz respeito ao Ensino Médio, a EaD é permitida, mas desde que na modalidade de convênio com uma instituição reconhecida, dando a entender que o Ensino Médio pode ter a colaboração do EaD, mas apenas de maneira a complementar às habilidades e competências previstas para serem satisfeitas nas instituições de ensino presenciais regulares. A ideia é que o Ensino Médio, um ensino que habilita o estudante à pesquisa e a competências mais técnicas, possa firmar parcerias a fim de ofertar tais conhecimentos específicos, não encontrados nas redes de ensino básico. Um aluno num itinerário formativo, digamos, de Matemática e suas Tecnologias, poderia, por exemplo, cursar disciplina num centro de Ensino à Distância de matemática de uma universidade. A ideia, novamente, é a complementação, não a substituição.
Conteúdo Online
Já podemos compreender com clareza do que se tratam, portanto, as propostas realizadas por diversos governos estaduais e municipais acerca do ensino em tempo de pandemia. Aos poucos, escolas, gestores e órgãos governamentais vão se convencendo de que a implementação geral do Ensino à Distância para dar conta da educação em tempos de corona vírus não é factível. Primeiro, porque não encontra respaldo na legislação. Segundo, porque, mesmo havendo autorização legal, a EaD é uma modalidade muito específica de ensino, de modo que sua implementação não é viável neste momento, quer por falta de recursos tecnológicos para todos, quer porque sua realização dependeria, em algum nível, de atividades presencias e um planejamento extenso inviável de ser elaborado às pressas.
O art. 4º do Decreto 9.057 de 2017 é claro quanto à necessidade mesmo no ensino à distância, de atividade presenciais:
Art. 4º As atividades presenciais, como tutorias, avaliações, estágios, práticas profissionais e de laboratório e defesa de trabalhos, previstas nos projetos pedagógicos ou de desenvolvimento da instituição de ensino e do curso, serão realizadas na sede da instituição de ensino, nos polos de educação à distância ou em ambiente profissional, conforme as Diretrizes Curriculares Nacionais.
Assim, podemos concluir que o que os governos propõem não é EaD, mas simples conteúdo online dirigido aos(as) estudantes das redes de ensino. É importante destacar a diferença: enquanto o EaD requer polos para se realizarem os tutoriais e avaliações presenciais, para além dos conteúdos à distância, as atividades online propostas pelas Secretarias de Educação pelo país contemplam apenas conteúdos direcionados aos alunos, simplesmente “jogados” nas plataformas digitais. Enquanto a EaD requer um planejamento extensivo, com progressões no tempo pensadas e adaptadas a cada conteúdo e abordagem, o ensino online sequer pode ser caracterizado como ensino, uma vez que os/as professores/as não possuem formação nem planejamento para atuar nesse segmento. Dessa forma, não há, por falta de condições concretas para esse tipo de trabalho, um acompanhamento sério por parte do(a) docente daquilo que o(a) aluno(a) precisa em seu aprendizado. Como aprender assim? De repente, não mais que derrepentemente, todos viraram autodidatas?
O que fazer? O calendário civil e o calendário letivo
Com a pandemia, os governos decretaram a política de isolamento social, o que quer dizer que as pessoas devem se preservar, evitando aglomerações e interações físicas para evitar o maior contágio. Isso significou a suspensão das aulas presenciais. Em outras palavras, o calendário letivo, aquele que conta as horas e os dias necessários para tornar o ano letivo válido, precisará ser adaptado.
A LDB diz que o ano letivo não precisa coincidir com o ano civil.
Art. 47. Na educação superior, o ano letivo regular, independente do ano civil, tem, no mínimo, duzentos dias de trabalho acadêmico efetivo, excluído o tempo reservado aos exames finais, quando houver.
Uma recente decisão do Ministério da Educação e do Governo Federal modificou a exigência dos 200 dias letivos, por meio da Medida Provisória nº 934, relaxando a obrigatoriedade dos dias em razão da suspensão das atividades escolares enquanto durar a pandemia, enquanto reafirmou um requisito mínimo de horas letivas, totalizando 800h letivas para se cumprir o ano letivo.
Art. 1º O estabelecimento de ensino de educação básica fica dispensado, em caráter excepcional, da obrigatoriedade de observância ao mínimo de dias de efetivo trabalho escolar, […], desde que cumprida a carga horária mínima anual estabelecida nos referidos dispositivos, observadas as normas a serem editadas pelos respectivos sistemas de ensino.
Uma solução para a educação pode ser simples. Bastaria reorganizar o calendário letivo após o período de isolamento social. Mas isso precisa ser feito com gestão democrática da comunidade escolar, replanejando as atividades presenciais e organizando o ensino-aprendizagem conforme cada realidade social, observando os princípios da educação universal e de qualidade.
Fontes:
Constituição Federal: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
LDB: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htmD9057/2017:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/decreto/d9057.htm
MP nº 934/2020: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Mpv/mpv934.htm
Deliberação CEE nº 376/2020: http://www.cee.rj.gov.br/deliberacoes/D_2020-376.pdf