Por João Passos Moura
No primeiro número do nosso jornal buscamos fazer entrevista com trabalhadores(as) autônomos(as) da música que buscam sobreviver no cotidiano a partir de suas artes.
Em um país onde o trabalho artístico sempre foi, não só negligenciado pelo poder público, mas também culturalmente desvalorizado pela população a partir do senso comum, decidimos conversar com dois desses artistas que buscam viver das suas chamadas “GIGS” (músicos e musicistas que trabalham por cachê recebido quando tocam): o saxofonista e flautista Gabriel Pontes (@gabepontes) e a cantora e compositora Anna Lu (@annaluoficial).
Além dos obstáculos enfrentados cotidianamente por esses artistas, vivemos um período de pandemia do COVID-19 e isolamento social, o que faz com que muitas vezes esses artistas também sofram com a falta de oportunidade de trabalho. Confiram as entrevistas.
1) Quais foram e são os seus principais trabalhos nos últimos anos que mais renderam profissionalmente e em termos financeiros?
Gabriel Pontes: As aulas, tanto particulares como em grupo, acabam dando uma sustança mais ou menos estável pra maioria dos músicos, mas a minha realidade acabou sendo outra na maior parte da minha vida profissional. As aulas sempre foram um complemento de renda. A maior parte da grana sempre veio de shows. E aí por show estou me referindo à execução de música ao vivo em geral. De casamentos e bar Mitzvahs* até barzinho, passando por blocos de rua, concertos com orquestra, baile de forró, show com cantores(as), etc etc . Nos últimos dois anos o “salvador da pátria” foi o Unicirco Marcos Frota, na quinta da Boa Vista. Trabalho fixo com salário fixo. Uma raridade no nosso mercado.
* Bar Mitzvah é uma celebração judaica que marca a passagem de um(a) menino(a) para a maioridade dentro da tradição e passa a assumir responsabilidades religiosas.
![](https://rale.noblogs.org/files/2020/05/InShot_20200422_204443876-300x295.jpg)
Anna Lu: Os casamentos e eventos em parcerias com shoppings foram os mais rentáveis financeiramente. O lançamento da minha primeira música e clipe em 2017 fizeram com que eu me dedicasse à composição e à criação da minha própria obra.
2) Como é a realidade de quem vive (ou tenta sobreviver) de cachês na cena musical do Rio de Janeiro?
Gabriel Pontes: Não é fácil. Me considero um privilegiado. Mas a realidade é que existem períodos de muita seca no mercado. Eu me sinto sortudo demais por ter vários trabalhos sazonais. Toco forró, que salva junho, julho e agosto. Toco em blocos de carnaval, que salvam fevereiro e março, toco em banda de baile, que toca pingado o ano inteiro e geralmente faz show de réveillon, que acaba salvando dezembro e janeiro. Nos outros meses o corre é intenso. Além das aulas, rola de tudo. Barzinho, tocar na rua passando chapéu, evento corporativo, festa particular etc. O pagamento nem sempre é bom, o tratamento nem sempre é tão digno… Mas é possível. Tem que ralar bastante e não pode escolher trabalho. Tocar só o que gosta é para pouquíssimos. Quem quer pagar as contas e não vem de berço de ouro tem que aprender a gostar de tudo que é música. Eu não sei se existe algum gênero que eu nunca tenha tocado em nome de um trocado.
Anna Lu: Os cachês e condições de trabalhos dos músicos da noite do Rio de Janeiro vêm piorando desde meados de 2017. Muitos músicos optam por aceitar essas condições porque não têm escolha e acabam legitimando uma prática abusiva e desrespeitosa de trabalho. Muitos lugares pagam menos de R$100 por músico, alguns repassam bilheteria e ainda tiram um percentual em cima, não garantem o mínimo, não dão consumação, ajuda para o transporte, demoram para pagar e acham que estão fazendo um grande favor de oferecer um lugar para se tocar.
3) Como você acha que o público enxerga o papel do músico na sociedade? A sociedade o vê como trabalhador?
![](https://rale.noblogs.org/files/2020/05/Gabriel-Pontes-300x201.jpg)
Gabriel Pontes: O discurso varia muito né. De maneira geral vejo muita hipocrisia. Quem diz que admira e respeita, muitas vezes não quer pagar ingresso, chora preço de aula e de cachê, etc… E tem a galera que acha que músicos são vagabundos e querem vida mansa. Mal sabem eles das horas de estudos, ensaios e passagens de som e do peso que carregamos nas costas. Acham que a vida do músico se resume ao momento da apresentação. Nos últimos tempos escutei bastante uma frase que rodou na internet que magoou muito: “já precisei de médico, advogados e até motoristas, mas nunca precisei de artistas”. O irônico disso é que agora que estão todos presos em casa. Essas pessoas só não enlouqueceram ainda porque estão ouvindo música, assistindo filmes e séries, lendo livros, etc. – de nada, né? De qualquer forma, essa frase diz bastante sobre o que o público pensa sobre o quesito “papel na sociedade”, né? Eles consomem nosso trabalho, mas acham que não servimos pra nada. Então eu acho que o público enxerga que o músico leva a vida na flauta, com o perdão do trocadilho, não nos considerando trabalhadores de fato. Claro que existe quem nos valorize de verdade, mas meu feedback da sociedade de maneira geral é bem negativo.
Anna Lu: O público não tem noção das condições praticadas na noite e muitas vezes acredita que o músico já está ganhando um cachê justo e que a entrada ou o couvert são tipo uma gorjeta do garçom. A diferença é que a gorjeta é opcional e o couvert, desde que seja avisado ao cliente, é obrigatório. A questão é a informação versus achismo. As pessoas são pouco informadas e normalmente artistas como eu, que tentam fazer jus às leis, são tidos como chatos e prejudicados na hora de serem chamados para tocar por conta disso.
4) Já em relação aos tempos do trabalho com música no período da pandemia, de que forma os músicos autônomos estão conseguindo pagar suas contas?
Gabriel Pontes: Eu vejo o pessoal dando muita aula on-line, que é o que estou fazendo agora. Já vi um amigo fazendo uma live pra uma cervejaria e vejo todo mundo fazendo lives de suas casas mostrando seus trabalhos, debatendo música e etc. Provavelmente, a grande maioria o faz sem receber nada por isso. Apenas como uma maneira de se manter em evidência e não cair no esquecimento, imagino eu. A maioria daqueles que vivia de shows está realmente passando necessidade. Eu já recebi cesta básica, depósito de amigos na minha conta bancária e conto com meu pai para manter o condomínio em dia.
Anna Lu: Nesse momento da pandemia, vejo diversos amigos músicos sofrendo de ansiedade sem saber como vão comprar comida. A receita foi de X a zero de um dia para o outro e a maioria não possuía reservas, pois mal se consegue pagar as contas do mês com o que se ganha na noite. As lives ajudam um pouco, mas a quantidade de ofertas de lives e a falta de organização dessas iniciativas acabam dispersando o público. A maioria que assiste não colabora com couvert e ainda é precária a tecnologia com relação à essa demanda de trabalho.
5) Qual a sua visão do contexto durante e depois da pandemia? Você acha que as coisas vão voltar ao normal em termos de trabalho pós período de quarentena? ajustar
Gabriel Pontes: Agora, durante o período de afastamento social, ganha dinheiro quem tiver bons equipamentos em casa… home studio, computadores, e que possam produzir trilhas, jingles ou até participar de gravações de maneira remota. As aulas on-line dão uma desafogada também. Conseguindo mais alunos já dá para não morrer de fome. Digo isso porque o valor das aulas caiu muito né. Todo mundo teve algum desfalque na renda, ao que tudo indica. Depois da pandemia, permitidas as aglomerações e eventos, acredito que possamos voltar a viver da execução de música ao vivo. As grandes perguntas são: quando isso vai acontecer? O que fazemos até lá?
Anna Lu: Na minha visão, vai levar um bom tempo para as coisas normalizarem. Apesar de acreditar que este momento em que estamos vivendo deveria servir, antes de tudo, para questionarmos o que se dizia normal, que também estava precário, mas por falta de opção, principalmente fomentos à noite carioca, nós músicos estávamos sujeitos a esse cenário. Ninguém sabe ao certo quanto tempo levaremos nessa desconstrução do “normal”. Mas com certeza os impactos serão irreversíveis.