Por Marco Antonio
Acho interessante iniciarmos esta conversa levantando algumas diferenças entre pessoas surdas, ensurdecidas e deficientes auditivos. Para começar, tenha em mente que toda pessoa surda é, em uma visão clínica, deficiente auditiva. Mas nem toda pessoa deficiente auditiva é Surda (depende do grau e características físicas do comprometimento). E a pessoa ensurdecida, por sua vez, teve sua audição suprimida em algum momento da sua infância ou fase adulta, por alguma patologia ou trauma. Já as pessoas ditas surdas (levando-se em consideração essas divisões) são as que têm surdez congênita. Esse breve e superficial apontamento servirá para nos situarmos no qual mais afetada a pessoa é, de acordo com sua identificação de surdez.
Podemos começar reconhecendo que, dentre as pessoas surdas, existem algumas características identitárias, determinadas por trajetórias de vida e/ou postura político-social, sendo que algumas convivem entre si e outras não. E há ainda diferenças simplesmente sociais, como ocorre com indivíduos acometidos por qualquer outra necessidade especial. Há de pessoas que nasceram ou ficaram surdas, e há pessoas surdas de diferentes classes sociais. Algumas destas diferenças identitárias e/ou sociais são determinantes em relação a postura da pessoa surda, como ela recebe o retorno da sociedade e, consecutivamente, como ela sente o impacto desta pandemia que nos assola.
Dito isto, preciso destacar as principais características identitárias das pessoas com surdez, fazendo uma compilação parcial da Revista FENEIS, de 2002. São elas:
- Identidades Surdas (identidade política): trata-se de uma identidade fortemente marcada pela Política Surda. São mais presentes em surdos que pertencem à Comunidade Surda e apresentam características culturais…;
- Identidades Surdas Híbridas: Surdos que nasceram ouvintes e, com o tempo, alguma doença, acidente, etc. os deixaram Surdos…;
- Identidades Surdas Flutuantes: Surdos que não têm contato com a Comunidade Surda. Ou são os Surdos que viveram na inclusão ou que tiveram contato da surdez como preconceito ou desconhecimento social. São outra categoria de Surdos, visto de não contarem com os benefícios da Cultura Surda. Eles também têm algumas características particulares…;
- Identidades Surdas Embaraçadas: são outros tipos que podemos encontrar diante da representação estereotipada da surdez ou desconhecimento da surdez como questão cultural.
- Identidades Surdas de Transição: estão presentes na situação dos Surdos que devido a sua condição social viveram em ambientes sem contato com a identidade surda ou que se afastaram da identidade surda.
- Identidades Surdas de Diáspora: as identidades de diáspora divergem das identidades de transição. Estão presentes entre os Surdos que passam de um país a outro ou, inclusive passam de um estado brasileiro a outro, ou ainda de um grupo surdo a outro. Ela pode ser identificada como o Surdo carioca, o Surdo brasileiro, o Surdo norte-americano. É uma identidade muito presente e marcada.
- Identidades Intermediarias: o que vai determinar a identidade surda é sempre a experiência visual. Nesse caso, em vista desta característica diferente, distinguimos a identidade ouvinte da Identidade Surda. Temos também a identidade intermediaria. Geralmente essa identidade é identificada como sendo Surda. Essas pessoas têm outra identidade, pois tem uma característica que não lhes permite a Identidade Surda, isto é, a sua captação de mensagens não é totalmente na experiência visual que determina a Identidade Surda. (FENEIS, 2002)
Quando nós conhecemos essa variedade de identidades surdas, podemos começar a ter uma noção, ainda que ínfima, de trajetórias de vida de algumas pessoas surdas, suas privações, angústias e lutas por visibilidade e direitos negligenciados.
A pandemia, para algumas pessoas surdas pode ter consequências devastadoras para muitos cenários, mas também traz à luz a vida, muitas das vezes sub-humanas a que são relegadas muitas pessoas, quando postas à margem da sociedade. Digo isso porque a experiência de vida social da maioria das pessoas surdas já era difícil antes da pandemia. O fator comunicação é imprescindível em vida social. Imagina uma pessoa, em alguns casos desde criança, a se limitar em seus anseios mais básicos, por se ver inserida em uma sociedade a qual não entende, e nem é entendida por ela. Incluindo muitas vezes sua própria família, que é a maioria dos casos dos Surdos que nascem em lares ouvintes.
Mas voltando à questão pandêmica, é notório que as mazelas sociais estão sendo mais evidenciadas, saindo das sombras sociais e invadindo os lares e as mídias de uma forma nunca antes vista, provocando, em um certo grau, a empatia e a cobrança social por mais atenção às situações negligenciadas e subjugadas de vida do povo menos favorecido. Dentre esses está a População Surda que, em muitos dos casos, se apresenta em diversas situações de desamparo.
Ainda são poucas as iniciativas e olhos voltados para tais pessoas, mas já se começa a ter a preocupação de se pensar na comunicação em LIBRAS. Alguns exemplos dessa preocupação são as máscaras transparentes; lives artísticas e culturais com janela interativa ou minimamente com legendas; a urgência da aprendizagem de LIBRAS e disponibilização de intérpretes em instituições públicas e comércios; entre outros. Até mesmo as famílias que têm crianças e jovens surdos em casa, com a permanência dessa pessoa por mais tempo junto com as demais, provoca a necessidade de se pensar sobre como melhorar a comunicação.
Então você poderia me perguntar: “Tá bom. E as questões negativas?”. São justamente essas questões positivas, negligenciadas, com o acréscimo de outras demandas. Assim, podemos retornar àquelas definições de Identidades Surdas. O mal pandêmico aflige com mais intensidade alguns indivíduos que se encontram em determinados grupos daqueles. Infelizmente não poderemos analisar em um contexto mais amplo, o que demandaria um conteúdo bem maior de informações. Dessa forma, vamos pegar um exemplo de um grupo mais afetado primeiro. Por exemplo, as pessoas que se identificam com o grupo da Identidade Surda Embaraçada. Segundo a revista FENEIS (2002), as características das pessoas surdas reconhecidas com essa identidade se apresentam da seguinte forma:
Sua comunicação é [isto é, se dá] por alguns Sinais incompreensíveis às vezes;
- Não têm condições de dizer onde moram, seu nome, sua idade, etc.;
- Não têm condições de usar Língua de Sinais, não lhe foi ensinada, nem teve contato com a mesma;
- São pessoas vistas como incapacitadas;
- Neste ponto, ouvintes determinam seus comportamentos, vida e aprendizados;
-
- É uma situação de deficiência, de incapacidade, de inércia, de revolta;
- Existem casos de aprisionamento de surdos na família, seja pelo estereotipo ou pelo preconceito, fazendo com que alguns surdos se tornem embaraçados. (FENEIS, 2002).
Pois é. Consegue imaginar a situação de uma pessoa idosa nessas condições, somando-se à atual circunstância na qual nos encontramos? Imagine as informações que não chegam, as necessidades básicas que não são supridas. Agora imagine essas pessoas com comorbidades, quase sempre acompanhadas a surdez e outras adquiridas pela vida.
Além disso, vamos tentar visualizar os jovens do citado grupo. Antes da pandemia já levavam uma vida de limitações, falta de perspectivas, mexendo com toda autoestima e saúde. Na pandemia, houve corte ou queda de salário, desemprego, doenças, necessidades. Sabe aquela história da negligência do poder público e do descaso da sociedade? Nesses casos as proporções do mal causado são maiores. São danos que 600, 1000, 2000 reais de auxílio emergencial não apagam. E, em se falando desse “auxílio”, imagine essas pessoas no caos da falta de informações, incertezas, fraudes, erros que foi a distribuição dessa esmola. Falam que o Brasil não é para amador, mas eu acredito que ele não é na verdade é para o pobre viver. Pode até sobreviver, mas viver de forma digna é outra história. Muito distante. E é nesse sentido que essa situação caótica pode dar uma visibilidade maior a esses entre outros casos que muitas vezes nos são desconhecidos, ignorados pela nossa turva visão social. É o que estamos fazendo agora com este texto.
Mas agora, vamos retornar à outra ponta, citando as diferenças identitárias surdas. Observando o grupo das pessoas que são da Identidade Surda, segmento mais politizado das identidades mostradas, percebemos que:
-
- Possuem a experiência visual que determina formas de comportamento, cultura, língua, etc.;
- Carregam consigo a Língua de Sinais. Usam sinais sempre, pois é sua forma de expressão. Eles têm o costume bastante presente que os diferencia dos ouvintes e que caracteriza a diferença surda: a captação da mensagem é visual e não auditiva. O envio de mensagens não usa o aparelho fonador, utiliza as mãos;
- Aceitam-se como surdos, sabem que são surdos e assumem um comportamento de pessoas surdas. Entram facilmente na política com Identidade Surda, onde impera a diferença: necessidade de intérpretes, de educação diferenciada, de Língua de Sinais, etc.;
- Passam aos outros surdos sua cultura, sua forma de ser diferente;
- Assumem uma posição de resistência;
- Assumem uma posição que avança em busca de delineação da identidade cultural;
- Assimilam pouco, ou não conseguem assimilar a ordem da língua falada, tem dificuldade de entendê-la;
- Decodificam todas as mensagens recebidas em Língua de Sinais;
- A escrita obedece à estrutura da Língua de Sinais, pode igualar-se a língua escrita, com reservas;
- Tem suas comunidades, associações, e/ou órgãos representativos e compartilham entre si suas dificuldades, aspirações, utopias;
- Usam tecnologia diferenciada: legenda e Sinais na TV, telefone especial, campainha luminosa;
- Tem uma diferente forma de relacionar-se com as pessoas e mesmo com animais;
(FENEIS, 2002)
Como se pôde observar pelas características do grupo em questão, se tem uma postura mais autônoma, reivindicatória de seus direitos, lutam contra a condição de excluídos sociais e exigem visibilidade. Mas não podemos nos enganar e achar que está tudo bem para essas pessoas. São mais visibilizados e chamam a atenção para suas necessidades mediante muito “barulho”. Na sua maioria são organizados, unidos, cuidam um do outro, mas sofrem pela distância de uma vida social longe do ideal. Qualquer isolamento enfraquece. E por ser a socialização e a troca uma das características da Comunidade Surda, há uma perda nesse processo na atual conjuntura, principalmente para os mais jovens, que ainda se encontram num processo de fortalecimento da sua identidade, necessitando mais dessa proximidade que as presenças remotas, das redes sociais e reuniões virtuais, não suprem. Alguns de nós podemos, vendo de fora, identificar a Comunidade Surda e seus espaços como “guetos”, o que caracterizaria um perpetuo e proposital distanciamento da “sociedade ouvinte”. Em alguma medida pode ocorrer isso por parte de alguns dos surdos. Porém, como disse anteriormente, eles precisam fortalecer sua Identidade Surda numa proporção cultural, haja visto que a cultura da nossa sociedade, majoritariamente ouvinte, não os contempla, não os agrega. Os supostos “guetos” é o que lhes resta. Não é o ideal, dentro de uma ideia igualitária de sociedade, mas é o jeito que essas pessoas têm de se fortalecer de alguma forma. Inclusive, se muitos desses jovens, em seus ambientes familiares e comunitário, onde a cultura ouvinte impera, sobrevivem e se impõem, é muitas das vezes pelo fortalecimento na sua cultura surda, na troca com seus pares.
Mas e as crianças surdas, como ficam nesse cenário? Como dá para imaginar, as crianças surdas ainda não estão firmadas em nenhuma dessas denominações identitárias citadas anteriormente, não sendo possível analisar suas situações nesse contexto pandêmico por tais parâmetros. No entanto, pode-se ter uma ideia a partir do que já é a vida em família dos pequenos. A postura familiar diante da surdez é crucial nesse processo, se tendo vários cenários para a diversidade de casos. Mas também precisa-se levar em consideração a questão do tipo de surdez e de quando se deu.
Para aprofundarmos o debate, pensemos nas crianças em idade de educação infantil até o fundamental l, por exemplo. Vamos imaginá-las sem a LIBRAS. Coloco a LIBRAS em destaque aqui pois é a base da comunicação e alfabetização, salvo alguns casos de uso de implante ou aparelhos, o que não é a realidade da maioria. Uma criança assim agora está em casa, 24 horas por dia, todos os dias da semana, sendo privada de todo o processo pedagógico e relacional, em lares onde a maioria ou todas as pessoas da sua família não sabem nada ou quase nada da sua língua materna, que ela começou a aprender, mas ainda não a domina. É um cenário com forte propensão a desencadear na criança sintomas de hiperatividade, agressividade, nervosismo, além da possibilidade do agravamento de possíveis comprometimentos que possam ter acompanhado a sua surdez. A família, muitas vezes, evita outras crianças por receio de conflitos pela falta de comunicação. Para a criança restam, portanto, a televisão e o celular, quando se tem. Esse panorama tende a se agravar se a família vive de forma precária, com poucos recursos, casa pequena com muitas pessoas, entre outras mazelas que não são raras. Em alguns casos pode até se desencadear maus tratos à criança por parte dos familiares, comprometendo ainda mais o aspecto psicológico dessa criança. Góes (1996), citado por Brito e Dessen (1999), diz que“Os efeitos da restrição de experiências de linguagem têm sido tradicionalmente associados a caracterizações estereotipadas da pessoa surda, a quem se atribui traços como pensamento concreto, elaboração conceitual rudimentar, baixa sociabilidade, rigidez, imaturidade emocional…”.
A criança surda, assim como a ouvinte, para ter minimamente um ambiente favorável para o seu desenvolvimento necessita interagir com seus pares, aprimorar sua linguagem, se identificar com o outro e com o meio. Muitas famílias não possuem possibilidades estruturais, econômicas e culturais para prover essa necessidade da criança sem o auxílio do ambiente escolar, que ameniza esse impacto social. E pensando em escola, não se pode deixar de pensar o que fazer neste momento. Se a saída da educação remota é inviável, pedagógica, logística e estruturalmente para alunos(as) de escolas regulares, o que dizer das escolas para surdos, onde se apresentam tamanhos impedimentos em um universo peculiar, de onde a escola presencial é insubstituível? Por outro lado, mais uma vez comparando, qualquer possibilidade de retorno, que é de difícil realização para as escolas regulares, ganha uma proporção ampliada em se tratando de uma escola onde questões culturais de socialização e aspectos de saúde quase que generalizados tornam imprudente qualquer forma de retorno presencial antes da descoberta e aplicação de uma vacina contra o COVID 19.
É importante ressaltar que, obviamente, este texto só destaca alguns pontos pertinentes à situação social da pessoa surda, durante a pandemia. A magnitude das dificuldades pelas quais passam a(o) Surda(o) no nosso país, não daria para ser esgotada neste breve texto. Além do que, ao comentar sobre tais fatos, o faço de uma posição de ouvinte que sou, que não está convivendo com nenhuma pessoa Surda neste período de isolamento, e que tem uma posição privilegiada na sociedade – majoritariamente de ouvintes – onde posso usufruir do pleno benefício da comunicação e tudo que está acarretado a isso. Sendo assim, nunca alcançaria a dimensão real do que passam as pessoas surdas. Salvo as devidas proporções, seria parecido com um branco falando do racismo sofrido pelos negros, ou um homem escrevendo sobre o que sofrem as mulheres por causa do machismo.
Ainda assim, o que trago aqui são colocações a partir de uma experiência (em curso) como professor de uma escola bilíngue para surdos, de estudos de casos como prática pedagógica, pesquisas e diálogos com responsáveis e alunas(os), antes e durante a pandemia. Tendo como objetivo contribuir minimamente com a divulgação da situação caótica pela qual passam as pessoas Surdas. Essa situação é a constatação do que já ocorria antes, mas agora há com o agravamento de um isolamento social coletivo e todas as suas consequências prejudiciais à vida das pessoas. Analisando o dia a dia da vida de alguns indivíduos Surdos é impossível não constatar a evidência do tão visceral que é a nossa desigualdade social, o descaso do dito “poder público” e sua leva de políticos que se alternam nos bancos da falácia representativa que, quando desviam sua “nobre” atenção ao povo, só veem um dedo, com um potencial de apertar uma certa tecla verde, fazendo com que a mamata se perpetue por mais um tempo. Por outro lado, também necessitamos da conscientização populacional, do olhar o outro, do reivindicar também pelo outro, porque é bem óbvio, não podemos esperar que os homens de lá virem justos da noite para o dia.
Bibliografia:
BRITO, Angela Maria Waked de; DESSEN, Maria Auxiliadora. Crianças surdas e suas famílias: um panorama geral. Psicol. Reflex. Crit., Porto Alegre, v. 12, n. 2, p. 429-445, 1999 . Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-79721999000200012&lng=pt&nrm=iso>. Acessos em 18 jul. 2020. https://doi.org/10.1590/S0102-79721999000200012;
PERLIN, Glandis – As diferendes Identidades Surdas; Revista da FENEIS – Ano IV – número 14, abr./jun. 2002.