Por Alexandre Velden e Ana Karenina Riehl
A cultura sempre está em crise. Mas na última década, o discurso da crise tem sido recorrente. É inevitável não pensar em um paralelo com a reflexão de Darcy Ribeiro: “A crise da educação no Brasil não é uma crise; é um projeto.” Resta à cultura um projeto calcado na precariedade?
Observemos os dados: O investimento federal na pasta da Secretaria da Cultura – outrora Ministério – vem sendo dramaticamente reduzido desde 2013, investimento que em média correspondeu a 0,07% do valor total público gasto entre os anos de 2003 a 2013. Aproximando um pouco mais a questão, no município do Rio de Janeiro, viveu-se em 2015 um calote do único edital para ações culturais na cidade, investimento que já não era muito satisfatório – de 25 milhões. A resposta da prefeitura foi, no mesmo ano, estabelecer um novo edital no valor de 500 mil reais para toda a cidade, 1/50 do valor anterior.
Essa mitigação atinge profundamente o teatro com o fechamento de mais de 30 casas de espetáculos só na capital. Nesse cenário, se desenhou, por parte de grupos teatrais da cidade, a busca empreendedora de modelos em rede, como o crowdfunding, para o financiamento de seus trabalhos. Ainda assim, dificilmente encontram-se artistas que conseguem sua sustentabilidade a partir de sua obra, de seu ofício. Além disso, o perverso sistema de patrocínio via isenção fiscal leva a que os escassos recursos se restrinjam a poucas produções e se concentrem geograficamente, não permitindo a democratização e o fomento de expressões culturais populares e periféricas.
Nesse cenário já difícil, a pandemia chega para instaurar a sensação de terra arrasada. Se as condições já dificultavam e impediam a produção teatral, como continuar produzindo uma arte que tem como principal prerrogativa o encontro? Com a paralisação das atividades, a sustentabilidade do artista, já tão precária, simplesmente deixa de existir. Caminhos foram pensados e propostos, tanto pela sociedade civil organizada quanto por parlamentares. A garantia do acesso ao auxílio emergencial (negado à categoria pelo executivo) é uma delas, assim como políticas que visem a manutenção dos espaços culturais existentes. A outra, mais problemática, é a criação de editais emergenciais. E por que falamos problemática?
A diferença nas condições de produção na cidade já era gritante, um exemplo é a concentração dos aparelhos de cultura no eixo zona sul-centro no Rio de Janeiro. Com editais emergenciais que têm a justificativa de ajudar artistas impossibilitados de exercer seu ofício, uma lupa é posta dentro dessas mesmas condições. Tais editais colocam não apenas como contrapartida, mas como seu próprio objetivo, a produção de um material artístico audiovisual. Isso quando não exige que o material seja produzido antes de sua inscrição, vide o Edital do Prêmio Funarte Respirarte.
Há, é claro, uma crise ética e estética em jogo, onde a busca pelo novo, por experimentações e por novos formatos do fazer teatral tem sido apresentada por muitos artistas. Sem dúvidas isso é legítimo. Mas a desigualdade se anuncia quando pensamos na exclusão digital, como o acesso limitado a aparelhos tecnológicos e à internet, por exemplo. Além disso, as diferentes condições de vida também influenciam na capacidade de criação de diversos artistas. Como garantir um espaço de criação para quem mora em uma casa com poucos cômodos e muitas pessoas? Como garantir tempo criativo quando o imperativo é o cuidado da casa, dos filhos ou mesmo de pessoas adoecidas? Poucos são aqueles que realmente têm condições de investir em seu ofício durante a pandemia. Que tipo de edital é esse, que visa ser emergencial e de ajuda, mas ao fazer uma exigência de contrapartida, impossibilita que boa parte dos trabalhadores do teatro possam recorrer ao mesmo?
Podemos também identificar um viés ideológico nesse projeto. A quem e por que interessa a exclusão da periferia na produção cultural? Adorno atribui um papel social à arte, onde a mesma cria condições para a reflexão dos indivíduos sobre a sociedade. No entanto, aos que agora estão no poder em nada interessa as reflexões dos debaixo. Primeiro porque não é interessante qualquer motivação a mentes questionadoras que podem voltar suas críticas ao estado de coisas atual. Segundo, pelo fato de que a arte crítica é potente arma na disputa ideológica. Nesse sentido, observamos nos últimos anos que um projeto conservador se solidifica, apoiando-se nos setores – empresariais e da sociedade – mais nefastos, contrários à construção de uma sociedade diversa, plural e democrática. Dessa forma, o projeto de exclusão econômica e política também é um projeto de “bons costumes” e ideologias excludentes. Como aponta o Observatório da Censura à Arte (http://censuranaarte.nonada.com.br/) – que acompanha a censura desde o caso do Queermuseu (setembro de 2017) – a perseguição e a criminalização de determinadas expressões artísticas cresce a cada ano. Também é praxe o conflito com artistas e gestores culturais não alinhados aos “bons costumes” e a indicação dos mais obscuros quadros para as entidades da cultura – “pessoas do mercado” e “olavistas” -, intelectuais comprometidos em aprofundar a invisibilidade dos conflitos e das lutas as quais marcam a história dos subalternos.
Nós, do Pé de Cabra Coletivo, há alguns anos vivemos enquanto grupo essas angústias e questões, tanto do ponto de vista das necessidades e dificuldades materiais e profissionais, como na batalha das ideias e na disputa por uma arte emancipadora e crítica. Nos firmamos como companhia teatral e coletivo cultural da Zona Norte do Rio de Janeiro, envolvido com a pesquisa estética, mas também interessados na reflexão e na construção coletiva de espetáculos e espaços emancipadores. Sempre nos foi uma experiência central e de muita riqueza nos apresentarmos em diversos locais – festivais, escolas, universidade, aparelhos culturais diversos – e dialogar com diferentes públicos. Nos últimos meses antes da pandemia, travamos contato com uma escola pública na qual iriamos estabelecer um instigante vínculo de oficinas, debates e projetos com os estudantes, professores e funcionários. Em contrapartida, a escola nos disponibilizaria um suporte físico para ensaios e a preparação de um próximo espetáculo. Em uma cidade carente de aparelhos culturais e de democratização de acesso à cultura, nos parece muito frutífero pensar as escolas também como parte dos espaços culturais urbanos. Estávamos animados para estabelecer essa interessante troca. Não será possível reestabelecer essa parceria tão cedo, e sem dúvida, os próximos projetos precisarão levar em conta, em seus processos criativos e pedagógicos, que estamos longe de um projeto político e de sociedade capaz de reverter a relação predatória estabelecida com o meio ambiente, sendo o mais provável que novas doenças, pandemias e catástrofes climáticas se avizinhem de forma cada vez mais frequente.
Por fim, lembremos que nesse difícil momento de isolamento social, a potência da arte de alguma forma foi reconhecida a partir de uma maior atenção e novos olhares e experiências. Para além da importância da arte na expressão particular de nossas angústias e dos receios crescentes, cabe lembrar que ela nos permite reflexões comuns e o estabelecimento de laços. Através dela construímos solidariedade e reforçamos concepções de mundo que não estão dispostas a aceitar uma balança de escolha entre a “economia” (leia-se, a manutenção das taxas de lucro e a intensificação da exploração) ou a vida. Contra uma sociedade igualitária, radicalmente democrática e diversa, a política econômica, cultural e ideológica dos governos na esfera federal, estadual e municipal do Rio de Janeiro, resgatam valores conservadores e fazem compromissos com milícias e setores autoritários. Um ataque que busca aprofundar uma história na qual monarquia, escravidão, ditadura e autoritarismo são benéficos em contraposição às lutas feministas, antirracistas, dos movimentos LGBTQI+ e os males do “marxismo cultural”. Sem dúvida, a arte e a educação, que se propõem reflexivas, emancipatórias e socialmente compromissadas, são inimigas desse projeto autoritário e excludente. Cabe a nós, compartilharmos nossas experiências, anseios e horizontes, refletindo o quanto esse difícil momento de isolamento social aprofunda as opressões e a exploração perpetrada pelo capitalismo contemporâneo. E assim repensarmos – e colocarmos em prática – a solidariedade, projetos afins e processos artísticos e pedagógicos emancipadores.